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sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Corrigir, por quê?


Corrigir, por quê?
            Uma estudante de pedagogia perguntou, num seminário sobre a teoria de Piaget, se “corrigir” os trabalhos dos alunos não significava ferir o princípio da autonomia. De fato, a pergunta é procedente e eu me reporto a ela na perspectiva de avaliação enquanto mediação.
É preciso analisar, em profundidade, o sentido da correção de trabalhos pelos professores. Percebe-se, sem dúvida, o atrelamento da ação corretiva à avaliação classificatória e sentenciva. Em outras palavras, corrige-se para dar notas e, nesta correção, sucedem-se às interrogações, as reprimendas em vermelho, as apreciações e orientações genéricas ao estudante.
Se retomarmos o significado da palavra corrigir, teremos retificar, endireitar, consertar. Nesse sentido, pela correção, tomar-se-ia o direito, na escola, de refazer o que o outro fez.
Em que medida impomos às crianças as nossas respostas através da ação corretiva? O exercício de descentração é fundamental para o desenvolvimento da autonomia intelectual. Encoraja-se o aluno a analisar situações do ponto de vista do outro e diferenciadas das suas. Se a oportunidade dessa reflexão não for oferecida ao aluno, ele limitar-se-á a repetir e imitar respostas, sem criticá-las, passivamente. E a passividade intelectual não permite a formação de personalidades autônomas.
Vale então perguntar: corrigir, por quê? A questão que deve ser feita é se tal correção favorece a compreensão e o desenvolvimento da autonomia dos alunos. Ou seja, se o fato de o professor apontar ou retificar suas respostas contribui para a possibilidade de o estudante tomar consciência das contradições. Mariana é aluna da 2ª série do Ensino Médio. Recebe uma prova de Física com conceito insuficiente e vários pontos do seu texto sublinhados, com sinais de interrogação. A solicitação, por escrito, do professor, é para que a aluna refaça duas questões, dentre as três, para a próxima aula. Qual é o ponto de partida de Mariana? Por onde ela deve começar o seu refazer? As frases sublinhadas sugerem (apenas sugerem para um leitor mais atento) que conceitos de calor e pressão atmosférica não foram corretamente aplicados na solução dos problemas. Mariana percebe isso a partir do meu comentário!
Sem dúvida, a tarefa de correção exigiu desse professor considerável esforço e tempo. O que se deve questionar é a validade desse esforço no que se refere a uma contribuição e orientação à aluna na retomada dos problemas. Por outro lado, pergunta-se se as dúvidas e as alternativas de solução propostas por Mariana terão chance de alcançar o nível de qualidade esperado pelo professor, sem outras vivências dos fenômenos, explicações complementares ou leituras adicionais.
A resposta de Mariana deveria ser analisada numa dimensão do “ainda não, - mas pode ser”, considerando, o professor, a sua responsabilidade na ação educativa fornecedora do vir a ser. Os desafios que a criança e o jovem enfrentam precisam ser encarados com maior seriedade em termos da sua compreensão, ao invés de restringirmos as causas do fracasso escolar às questões puramente atitudinais (interesse, esforço, concentração) ou as desigualdades sociais e culturais.
È linguagem comum dos professores o dizer que está na escola para aprender e que o erro faz parte dessa trajetória. Esse lugar-comum não encontra eco na ação avaliativa. Os erros cometidos pelos alunos sofrem sérias penalidades e tendem a permanecer sob a forma de dificuldades. Muitas vezes tais erros são até mesmo reforçados por determinados procedimentos de correção.
A dinâmica da avaliação efetiva-se, justamente, a partir de análise das respostas do educando frente às situações desafiadoras nas diferentes áreas de conhecimento. Suas perguntas e respostas, suas manifestações representam tentativas de apropriar-se de múltiplas relações entre os fenômenos que vivencia. Um ambiente livre de tensões e limitações favorece as tentativas de conquista do saber. Ao mesmo tempo em que permite ao professor a análise das relações estabelecidas em termos da lógica existentes nas soluções apontadas pelo aluno.
Torna-se, então, sumamente importante o acompanhamento pelo professor das tarefas realizadas pelo educando em todos os graus do ensino. Só que esse acompanhar abandona o significado atual de retificar, reescrever, sublinhar, apontar erros e acertos. E se transforma numa atividade de pesquisa e reflexão sobre as soluções apresentadas pelo aluno, anotando respostas diferentes, questões não respondidas, registrando-se relações entre soluções apresentadas por ele.
Esse acompanhamento ativo do processo de construção de hipóteses pelas crianças fundamentaria o processo educativo intermediador entre uma tarefa e as que lhe sucedem, no sentido de favorecer e observar os avanços na construção do conhecimento.
Dessa forma, o processo avaliativo a que me refiro é um método investigativo e que prescinde da correção tradicional, impositiva e coercitiva. Pressupõe, isso sim, que o professor esteja cada vez mais alerta e se debruce compreensivamente sobre todas as manifestações do educando. O erro lido m sua lógica, as hipóteses preliminarmente construídas pelo aluno (o ainda não, mas pode ser) são elementos dinamizadores da ação avaliativa enquanto mediação, elementos significativos na discussão, na contra-argumentação e na elaboração de sínteses superadoras.
A correção, por ser estática e frenadora, contrapõe-se a essa perspectiva. O professor não aceita e nem sequer analisa a lógica implícita nas respostas das crianças. O aluno, por sua vez é submisso às correções, às apreciações, aos conceitos atribuídos. A oposição que se estabelece entre ambos, obstrui, impede a relação dinâmica necessária ao movimento do diálogo.

O diálogo é a confirmação conjunta do professor e dos alunos no ato comum de conhecer e reconhecer o objeto de estudo. Então, em vez de transferir o conhecimento estaticamente, como se fosse posse fixa do professor, o diálogo requer uma aproximação dinâmica na direção do objeto. (Freire, 1.986)        
                                  

Linhas norteadoras


O que quero alertar é sobre a possibilidade de a ação avaliativa, enquanto mediação, contribuir para a superação de quaisquer posicionamentos radicais que reforcem as relações de poder no ambiente escolar.
No dizer de Cury(1985), “os contrários opõem-se e se impregnam mutuamente. Assim cada um deles é condição para que exista o outro e, no seu movimento, cada um se converte no outro”. A valorização das respostas dos alunos pode acontecer justamente ao transformarmos suas alternativas de solução em outras perguntas, ou ao considerá-las como argumentos dignos e importantes para discussão. A confiança mútua entre educador e educando quanto às possibilidades de reorganização conjunta do saber pode transformar o ato avaliativo em um momento prazeroso de descoberta e troca de conhecimento. Em busca da concreticidade desses princípios, aponto algumas linhas norteadoras de avaliação numa perspectiva mediadora:
  • Conversão dos métodos de correção tradicionais (de verificação de erros e acertos) em métodos investigativos, de interpretação das alternativas de solução propostas pelos alunos às diferentes situações de aprendizagem.
  • Privilégio a tarefas intermediárias e sucessivas em todos os graus de ensino, descaracterizadas de funções de registro periódico por questões burocráticas. (Não advogo, em princípio, a não-existência dos registros escolares, mas alerto quanto à subordinação do processo avaliativo a tais exigências).
  • Compromisso do educador com o acompanhamento do processo de construção do conhecimento do educando numa postura epistemológica que privilegie o entendimento e não a memorização.
O objetivo do desafio que se enfrenta, quanto a uma perspectiva mediadora da avaliação, é, principalmente, a tomada de consciência coletiva dos educadores sobre sua prática, desvelando-lhe princípios coercitivos e direcionando a ação avaliativa para o caminho das relações dinâmicas e dialógicas em educação.

Hoffmann, Jussara. Avaliação – Mito&Desafio – Uma perspectiva construtivista. Ed. Meditação.2003.

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